Mendes Barreto & Advogados | Desafios e Embates – Saúde Pública x Saúde Privada em Tempos de Covid-19

Fonte: Luiz Guilherme Mendes Barreto - Mendes Barreto & Advogados Publicado em

Não é novidade que temos enfrentado tempos bastante estranhos com a Pandemia do COVID-19. São enormes os impactos sociais e econômicos em toda a sociedade e nas empresas. Porém, uma das áreas que tem sofrido o maior impacto, é aquela integrante do sistema de saúde público e privado. Porém, visualizando o ponto positivo de toda essa situação, a pandemia tem trazido uma importante reflexão sobre esta intrincada relação entre saúde pública e privada.

Esse artigo, como o próprio nome afere, focará a discussão no embate de responsabilidades entre a saúde pública e privada.

Importante iniciarmos com o conceito de: é dever exclusivo do Estado prestar acesso à saúde aos seus cidadãos, sem distinção. Tal dever está definido, notadamente, no artigo 196 da Constituição Federal que diz: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

A saúde pública é dever do Estado pelo simples fato dele ser o responsável por garantir a vida da população. No Brasil, adotou-se o Sistema Único de Saúde, o SUS, que estabelece uma rede sinérgica nessa matéria entre União, Estados e Municípios, cada um com sua responsabilidade específica no sistema.

Embora dever do Estado, a partir da Constituição de 1988 foi possível estabelecer, de forma regulamentada, a participação da iniciativa privada no sistema de saúde, a chamada saúde suplementar.

A saúde suplementar, como o próprio nome alude, veio para oferecer uma alternativa (não obrigatória) à prestação desse serviço no Brasil, e, hoje, mostra-se ainda mais fundamental para atender e suprir as enormes demandas do sistema, notadamente através das fragilidades trazidas à tona pela pandemia do COVID-19.

O sistema privado possui importância fundamental, pois ajuda a desafogar o Sistema de Saúde Brasileiro, que, como na maioria das outras áreas, apresenta um estado de calamidade, não suprindo questões básicas da população.

Nosso país possui aproximadamente 47 milhões de pessoas que fazem uso do sistema suplementar ou privado, trazendo uma notória e enorme contribuição ao país, que praticamente não precisa suportar os gastos com saúde dessa população. Embora todos, por dever constitucional, devam estar cobertos pelo sistema público, há uso quase que exclusivo do sistema privado ou suplementar dessa parcela da população, pelo latente ganho na qualidade dos serviços.

O sistema de saúde suplementar no Brasil é mais do que um serviço disponibilizado à população – que possui condições financeiras para tê-lo, é, também, um verdadeiro alívio ao SUS, e, por consequência aos cofres da União, que não conseguiria dar vazão à mais essa enorme demanda.

Com essa rápida reflexão, podemos concluir que o serviço de saúde é obrigação exclusiva do Estado a todos os cidadãos, e, o serviço suplementar é um serviço PRIVADO e, infelizmente, restrito apenas aos que possuem condições de arcar com seus custos.

Entretanto, o mercado tem enfrentado – há bastante tempo – questões que trazem ao sistema de saúde suplementar enormes dificuldades, importando em tantos prejuízos que, na maior parte das vezes, ocasiona um aumento de preços aos consumidores/beneficiários e dificulta o crescimento e estabilização do mercado. Parece incrível, mas, esse é o modelo de gestão pública brasileiro que lesa quem diretamente o beneficia, forçando o ente privado a situações que colocam em risco sua própria existência. E, por consequência, sabota seus próprios cidadãos, à medida que agrega custos expressivos na já tão dispendiosa saúde privada.

Infelizmente, boa parte do judiciário tem se colocado nessa mesma linha. Por desconhecimento da legislação regulatória ou pelo peso de uma decisão judicial nessa área, os juízes têm decidido à margem da lei, forçando as empresas que compõem o sistema de saúde suplementar a assumirem obrigações que são exclusivamente voltadas à saúde pública, portanto, ao Estado.

É uma grande contribuição para a inviabilização de um sistema que veio para amenizar todo o acesso à saúde do brasileiro.

O assunto é muito rico e extenso, por isso, iremos exemplificar no mais recente problema de saúde nacional (e mundial): a pandemia de COVID-19.

No Escritório temos recebido diversos casos em que o consumidor requer a continuidade de vigência do plano de saúde sem a contrapartida de pagamento, devido à perda da capacidade econômica. Isso nos chama tanta atenção, que abrimos um grupo de estudos permanente para alcançar formas rápidas e adequadas para defesa dos interesses de nossos clientes, afastando decisões catastróficas nesse sentido, muitas em sede de liminar.

No meio dessa discussão, nos deparamos – perplexos – com os Projetos de Lei n°s 1885/2020, 2113/2020 e 1542/2020, que possuem a intenção de alterar o texto da Lei 13.979/2020 (que dispõe sobre as medidas de enfrentamento à pandemia do COVID-19), para que os beneficiários de planos de saúde, respectivamente: tenham direito à prestação dos serviços mesmo ante a inadimplência; proibição de restrição de cobertura a qualquer doença ou lesão decorrente da COVID-19, e; a suspensão, por 120 dias, do ajuste anual dos preços de medicamentos e dos planos e seguros privados de assistência à saúde.

Temos então, como não poderia deixar de ser, além do Poder Executivo, através da União Federal (que regula o mercado privado através da Agência Nacional de Saúde Suplementar), o Legislativo e o Judiciário, a agir contra todo o sistema de saúde suplementar, que, repetimos, é justamente quem desafoga e retira a obrigação da União Federal de arcar com o custo de mais de 47 milhões de habitantes (ou cerca 25% da população). É a iniciativa pública atribuindo ao particular a obrigação do Estado.

E aqui, não nos cabe entrar na discussão técnica da validade de tal projeto de lei, mas, somente do ponto de vista do princípio da “livre iniciativa”, já estaríamos diante de uma monstruosidade legal.

Ora, o Estado é o responsável absoluto pela saúde pública, direito à vida e normas correlatas à matéria, não se podendo admitir sob nenhum aspecto, que o ente privado seja obrigado a prestar serviços sem a contrapartida financeira. Isso é contra, inclusive, a todas as diversas normas constitucionais, nacionais, e, mesmo as regulatórias que acompanham, definem e fiscalizam o sistema de saúde suplementar, através da já citada Agencia Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

E, se pensarmos em direitos correlatos, citemos a alimentação, também parte do direito à vida e à saúde, e, vamos exigir que os supermercados disponibilizem mantimentos a todos que cheguem ao caixa com seus carrinhos de compras cheios e aleguem que não tem condições de pagar. Isso nos causa enorme perplexidade, mas, é exatamente a mesma situação, entretanto, nunca nos deparamos com uma ação judicial nesse sentido.

Como já discutimos acima, muitos juízes e legisladores, que não possuem qualquer noção do impacto que isso está causando na área de saúde, assumem posições que podem inviabilizar todo o sistema, é desastroso. Uma vez que tais medidas sejam ainda mais difundidas e tomem ampla proporção, no tocante ao uso de qualquer serviço de saúde sem o justo pagamento (seja por decisão judicial, seja por texto de lei), haverá a liberação direta e indiscriminada de produtos privados para todos os que não puderem pagar. Pode parecer absurdo pensar dessa forma, mas, esse é o caminho que se desenha.

Imaginemos que o projeto de lei 1885/2020, para citarmos apenas esse exemplo, seja aprovado? Nessa hipótese, talvez tenhamos que lidar com uma série de contratações de planos de saúde, cujos pagamentos não poderiam ser sustentados por seus beneficiários, e, como consequência, receberem meses de acesso gratuito ao serviço imputando os custos ao setor privado. É obvio que essa situação levaria à uma dificuldade ou “falência” de todo o sistema de saúde suplementar (operadoras, administradoras, brokers), vez que assumiriam gastos bilionários sem nem sequer terem o justo pagamento por seus serviços.

Assim, sob qualquer ângulo que se analise as questões aqui colocadas, temos a iniciativa privada funcionando como um substituto de serviços estatais de baixa ou nenhuma qualidade, e, isso, não pode ocorrer, sob pena de colocarmos não somente o sistema de saúde suplementar, mas, o próprio Estado Democrático sob enorme risco de desaparecer.

Escrito por: Luiz Guilherme Mendes Barreto

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